terça-feira, 15 de setembro de 2020

Reconhecer nossa humanidade em comum pode não ser suficiente para impedir o ódio

Compartilho abaixo a tradução que fiz do artigo Recognising our common humanity might not be enough to prevent hatred, publicado no site Psyche no dia 2 de Setembro pela professora de psicologia da York University Harriet Over.

Ontem à noite, minha filha e eu nos enrolamos debaixo de um cobertor e lemos Under the Same Sky [Debaixo do mesmo céu] (2017), escrito pela Britta Teckentrup. É um lindo livro, ilustrado, sobre como somos fundamentalmente semelhantes uns aos outros. Ele começa assim: 'Vivemos sob o mesmo céu, em terras próximas e distantes. Vivemos sob o mesmo céu, onde quer que estejamos. Sentimos o mesmo amor no gelo frio e na neve. Sentimos o mesmo amor onde crescem prados delicados... '.

Oitenta anos atrás, uma mãe e uma filha alemãs poderiam muito bem ter se enrolado sob um cobertor da mesma maneira, mas com um livro infantil muito diferente, Der Giftpilz (1938), de Julius Streicher, - que poderia ser traduzido como "O cogumelo venenoso". Enquanto a capa do livro de Teckentrup traz duas raposas amorosas, a capa de Streicher apresenta horríveis caricaturas de homens judeus na forma de cogumelos e, no texto, ele descreve os judeus como uma praga e como demônios.

"O cogumelo venenoso" é frequentemente citado como um exemplo de desumanização - uma tendência de ver aqueles de fora do grupo [outsiders] como menos humanos. De acordo com a opinião consensual entre psicólogos e outros especialistas, membros de grupos externos são freqüentemente vistos como mais próximos de animais ou máquinas do que de outros seres que merecem cuidado. Além disso, esses especialistas acreditam que a desumanização está no cerne dos danos intergrupais. Argumentam que os nazistas nunca poderiam ter enviado homens, mulheres e crianças a Auschwitz se tivessem reconhecido sua humanidade em comum.

É uma ideia intuitivamente atraente. Quando os defensores da [ideia de] desumanização citam exemplos, como o do "O cogumemelo venenoso", que são tão poderosos e tão emocionalmente evocativos, é difícil questioná-los. Em seu livro Less Than Human (2012), o filósofo David Livingstone Smith reuniu inúmeros casos históricos semelhantes, onde os perpetradores de danos intergrupais extremos descreveram suas vítimas como menos humanas, incluindo o genocídio Hutu dos Tutsis em Ruanda em 1994 e a opressão de negros americanos por brancos sob o regime de escravidão no sul dos Estados Unidos.

Nenhum de nós está isento dessas forças. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, não é incomum ouvir os imigrantes serem chamados de 'enxame' ou 'infestação'. A pesquisa psicológica também sugere que a desumanização não ocorre apenas dentre os extremistas. Quando voluntários são solicitados a avaliar as qualidades de diferentes grupos, mesmo aqueles que sustentam visões políticas moderadas frequentemente negam sutilmente aos grupos externos [outgroups] qualidades exclusivamente humanas, como civilidade, racionalidade e refinamento. Em estudos de percepção de emoção, nos quais voluntários são solicitados a avaliar as experiências emocionais de outras pessoas, eles relatam que os membros de grupos externos ao seu experimentam emoções humanas complexas, como orgulho, admiração e culpa, em menor grau do que membros do seu próprio grupo [ingroup].

No entanto, observe mais de perto as evidências, e a alegação de que grupos externos são desumanizados perde um pouco, talvez a maior parte, de seu valor explicativo. Existem dois problemas principais. Primeiro, não está claro se os grupos externos realmente são percebidos como menos humanos do que os internos. Em segundo lugar, mesmo que grupos externos sejam percebidos como menos humanos, não está claro por que isso aumentaria o risco de danos contra eles.

Conforme observado por outros autores, incluindo a filósofa Kate Manne e o psicólogo Paul Bloom, quando as pessoas depreciam os membros do grupo externo, elas geralmente os descrevem de maneiras que só fazem sentido quando aplicadas a humanos. No livro "O cogumelo venenoso", por exemplo, os judeus são descritos como mentirosos, vigaristas e estupradores. A propaganda nazista está repleta de exemplos semelhantes. Faz sentido chamar outro ser humano de vigarista, mas não faz sentido se referir a um animal ou a uma máquina dessa forma.

Além disso, embora membros de grupos externos sejam freqüentemente descritos como semelhantes a entidades não humanas, também o são membros de grupos internos. Olhe além da capa e o texto de "O cogumelo venenoso" revela que este é o caso: 'Os seres humanos neste mundo são como os cogumelos na floresta. Existem bons cogumelos e existem boas pessoas. Existem cogumelos venenosos e ruins e existem pessoas ruins'. Os judeus são comparados aos cogumelos, mas o povo alemão também o é.

A pesquisa psicológica que mostra evidências de desumanização também enfrenta desafios conceituais. Os modelos atuais sugerem que, quando as pessoas desumanizam sutilmente os grupos externos, negam-lhes qualidades exclusivamente humanas, como civilidade, refinamento e racionalidade. Isso pode muito bem ser verdade, mas e quanto às qualidades humanas mais anti-sociais? Os humanos podem ser civilizados, refinados e racionais, mas também podem ser mesquinhos, rancorosos e arrogantes. Em uma pesquisa em andamento em meu laboratório, nós perguntamos a voluntários sobre essas qualidades negativas e descobrimos que eles as consideram exclusivas dos seres humanos. Além disso, eles atribuem essas qualidades exclusivamente humanas mais fortemente aos grupos externos do que ao seu próprio grupo. Meus colegas e eu levantamos a hipótese de que o que parece ser uma evidência para a desumanização pode na verdade ser uma evidência para um processo mais básico de preferência intragrupal [ingroup preference] - que significa acreditar que seu próprio grupo possui qualidades humanas mais positivas e que outros grupos têm qualidades humanas mais negativas.

Existem também desafios para a pesquisa neurocientífica que pretende mostrar evidências de desumanização. Em um artigo amplamente citado, publicado em 2006, os pesquisadores Lasana Harris e Susan Fiske argumentaram que, quando as pessoas desumanizam grupos externos, elas pensam que eles carecem de estados mentais, como desejos, crenças e objetivos. Aparentemente corroborando essa visão, a dupla relatou que quando seus voluntários de pesquisa viram fotos de membros de grupos externos, como moradores de rua ou dependentes de drogas, eles exibiram menos ativação em áreas do cérebro associadas à mentalização, particularmente no córtex pré-frontal medial. No entanto, a caracterização de desumanização de Harris e Fiske é enfraquecida por exemplos supostamente prototípicos de desumanização extrema nos quais os perpetradores parecem fazer inferências do estado mental sobre suas vítimas. Por exemplo, a propaganda nazista está repleta de referências às supostas mentiras e conspirações dos judeus para atingirem seus objetivos. Essas referências às crenças e planos do povo judeu eram imprecisas e cheias de intenções maliciosas, mas eram, de toda forma, inferências de estado mental - acusar uma pessoa de mentir é fazer uma inferência sobre o que ela está pensando.

O que dizer então da alegação de que a desumanização dos grupos externos contribui para a disposição para prejudicá-los? Também aqui há razão para ser cético. Muitas pesquisas nesta área baseiam-se no pressuposto de que, ao minar o nosso reconhecimento uns dos outros como semelhantes, a desumanização corrói a inclinação natural que temos de cuidar uns dos outros. No entanto não é sensato colocar muita fé no desejo humano de proteger e cuidar de outros humanos. Na verdade, os membros de grupos externos às vezes são prejudicados por causa de sua humanidade percebida. Afinal, apenas humanos podem ser assassinos, traidores e inimigos - e assassinos, traidores e inimigos são vistos como alvos legítimos para tratamento negativo.

Uma segunda razão para duvidar do suposto papel causal da desumanização no dano intergrupal é que muitas pessoas têm um poderoso instinto de tratar animais não-humanos com muito cuidado. Os animais de estimação, por exemplo, são obviamente "menos que humanos" e mesmo assim as pessoas dispensam cuidado, atenção e dinheiro com eles. Ver um grupo como menos do que humano, então, não parece nem necessário nem suficiente para prejudicá-los.

Minha crítica à desumanização como uma explicação para os danos intergrupais tem implicações que vão além do debate acadêmico. Inspirados por trabalhos nesta área, alguns pesquisadores começaram a desenvolver intervenções voltadas para a mudança social que pretendiam reduzir a desumanização. Embora bem intencionados, esses esforços podem estar sendo mal direcionados. Minha análise sugere que as tentativas de fomentar uma sociedade mais inclusiva e igualitária poderiam ser melhor direcionadas caso se focalizassem em outros processos psicológicos já bem estabelecidos, como a tendência humana de estereotipar e depreciar as pessoas de fora do grupo [outsiders].
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