segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Transplante de cabeça ou de corpo?

Saiu esta semana em diversos jornais e sites (veja, por exemplo, aqui) a notícia de que o neurocirurgião italiano Sergio Canavero programou a primeira cirurgia de transplante de cabeça para o ano de 2017. Neste momento ele prevê que será possível realizar tal cirurgia com sucesso. Até lá a equipe pretende planejar detalhadamente o complexo procedimento - que estima-se que envolverá 150 médicos e enfermeiros, demorará 36 horas e custará mais de 11 milhões de dólares. O escolhido para tal feito foi o russo Valery Spiridonov, que se voluntariou para o transplante. Spiridonov sofre de uma doença muscular degenerativa chamada Síndrome Werdnig-Hoffman e, com, o transplante de sua cabeça para o corpo de uma pessoa que teve morte cerebral, estima-se que seu tempo de vida seria ampliado em 30 anos. Espera-se que após esta cirurgia pioneira outras pessoas com problemas corporais semelhantes ao de Spiridonov poderão ser beneficiadas com tal procedimento.

A ideia de um transplante de cabeça é antiga e já foi tentada, com relativo sucesso, com animais. Não acredita? Então leia o sensacional livro "Curiosidade Mórbida: a ciência e a vida secreta dos cadáveres", escrito pela jornalista Mary Roach e lançado recentemente no Brasil. Neste livro, Mary resgata uma série de experimentos esdrúxulos realizados com animais (pobres animais!) por alguns cientistas e cirurgiões durante o século XX. Na década de 1950, por exemplo, o russo Vladimir Demikhov transplantou cabeças de filhotes de cachorros - na verdade conjuntos de cabeças, ombros, pulmões e patas dianteiras - nas costas de cães adultos (veja a foto). Na maioria dos experimentos, as "cabeças transplantadas" duraram pouco devido a reações imunológicas: em média, viveram de 2 a 6 dias, mas houve um caso que durou 29 dias. Em suas efêmeras existências, algumas cabeças-filhotes agiam como cães "normais", como é possível observar nestas notas publicadas por Demikhov em seu livro "Transplantes experimentais de órgãos vitais": "9h. A cabeça do doador bebeu água e leite com avidez e mexeu-se como se tentasse separar-se do corpo do receptor; 22h30. Quando o receptor foi posto para dormir, a cabeça transplantada mordeu o dedo de um membro da equipe e o fez sangrar; 26 de fevereiro 18h. A cabeça do doador mordeu a orelha do receptor, que ganiu e sacudiu a cabeça". Não é curioso isto? Na década seguinte, o neurocirurgião norte-americano Robert White realizou cirurgias semelhantes com cachorros e macacos (algumas de cérebro e não de cabeça) e chegou a resultados semelhantes: a cabeça ou o cérebro transplantados esboçavam alguma resposta mas, devido a reações imunológicas, eram rejeitados pelo corpo receptor. O problema permanece.

Mas para além de uma cirurgia extremamente complexa do ponto de vista técnico, o transplante de cabeça traz em seu escopo, também, uma série de questões filosóficas igualmente complexas. Se o nosso eu (ou seja, a soma de nossas memórias, pensamentos e sentimentos) está localizado exclusivamente no cérebro, como defendem muitos neurocientistas contemporâneos, então um transplante de cabeça (ou de cérebro) seria, na verdade, um transplante de corpo. Se o "eu" está no cérebro, a cabeça transplantada em um novo corpo levaria junto a personalidade de seu dono (ou seja, do dono da cabeça). Caso sejam superadas as dificuldades técnicas de "fundir" os sistemas nervosos da cabeça e do novo corpo, de "despertar" a cabeça e de não haver rejeição imunológica, aí poderemos saber se esta teoria está correta ou não. Se a cabeça neste novo corpo mantiver a personalidade do "dono" do cérebro original, isto significaria que o cérebro é realmente o lócus do "eu". Mas a questão é saber se haverão também perdas. Isto significa avaliar o quanto do nosso "eu" depende do (ou está relacionado ao) nosso corpo. Adeptos da chamada teoria da cognição incorporada defendem que a nossa cognição, e a nossa mente de uma forma geral, não apenas dependem do corpo mas, de certa forma, são nosso corpo. Mente e corpo não seriam entidades distintas mas uma unidade. Isto significaria que o nosso corpo é fundamental para a constituição do que somos - e se, por acaso, nosso corpo se alterasse, já não seríamos os mesmos (se é que, de fato, há uma unidade no que somos ao longo de nossas vidas). Assim, a ideia de um transplante de cabeça - e mais radicalmente, de um transplante de cérebro - não significaria, de forma alguma, um transplante de alma ou de "eu". Com outro corpo, seríamos outros. Agora cabe-nos aguardar os próximos capítulos desta jornada rumo a um transplante de cabeça para avaliarmos como, de fato, será essa nova pessoa resultado da fusão de dois corpos.  

Update 15/09/15: Veja abaixo uma reportagem do Domingo Espetacular sobre o tema.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

"Que horas ela volta?" e a (des)naturalização das desigualdades sociais

Existem filmes bons, existem filmes interessantes, existem até filmes importantes. E existem também filmes fundamentais. O brasileiro "Que horas ela volta?", escrito e dirigido pela Anna Muylaerte, faz parte de um restritíssimo grupo de obras que se enquadra nesta última categoria. Trata-se de um filme fundamental para entender o nosso mundo - e mais especificamente a sociedade brasileira. Mas não só. Penso que o filme, além de abrir os olhos de muitos para a absurda desigualdade social que vivemos (e que apesar dos inúmeros avanços, ainda permanece), pode ainda favorecer uma necessária mudança social. É claro que mudanças são lentas, mas os debates que tem se espalhado pelo Brasil sobre este filme, podem gerar consequências positivas. Quero acreditar nisso. No cinema onde fui - em um bairro de classe média-alta - não havia somente os espectadores típicos dos cinemas. Vi também pessoas que muito provavelmente trabalham como empregadxs, porteirxs e motoristxs destes espectadores típicos. Não eram muitos, claro, mas estavam lá. E isto tem ocorrido em vários cinemas do país. 
E estas pessoas vão lá e muito provavelmente se identificam plenamente com a personagem Val, vivida de forma soberba pela Regina Casé (tenho lá minhas críticas ao programa Esquenta e até à própria pessoa da Regina Casé mas tenho que admitir que, como atriz, ela é sensacional). Se você já leu alguma coisa sobre o filme deve saber que Val é empregada doméstica, já há muitos anos, de uma família de classe média alta de São Paulo - ela é "praticamente" da família (#sqn). O filme retrata, do ponto de vista de Val e de sua filha a complexa e verticalizada relação entre patrões e empregados - que reproduz de forma mais ou menos explícita a relação Casa Grande e Senzala. Mas o que este filme traz de interessante não é simplesmente essa constatação, mas a produção de um incômodo constante ao colocar determinadas pessoas fazendo o que elas não "deveriam" estar fazendo. Exemplifico: é "sabido" que empregadas não devem almoçar na mesa com os patrões nem desfrutar da piscina da casa. Isto é entendido, normalmente, sem qualquer questionamento nem das empregadas nem dos patrões. Como diz Val, “a pessoa já nasce sabendo". Simplesmente "é" assim - como, supostamente, sempre teria sido. Mas e se de repente, não mais que de repente, a empregada (no caso a filha da empregada) almoçasse na mesa do patrão e nadasse na piscina? O que o filme nos causa todo o tempo é este incômodo de ver pessoas não seguindo os papéis sociais que elas "deveriam" estar seguindo. 
Com isto, o filme consegue desnaturalizar determinadas regras sociais e com uma vantagem: sem demonizar os patrões. Estes não são retratados como sujeitos cruéis e sádicos que adoram submeter as empregadas a regras escrotas e sem sentido. Não. Eles são pessoas como eu ou você que simplesmente reproduzimos, muitas vezes sem pensar, determinadas regras implícitas e nos incomodamos quando elas são rompidas. Na verdade, a família retratada no filme é muito mais "progressista" do que muitas famílias de outros filmes e séries do tipo (e eu penso especialmente no filme francês Mulheres do sexto andar e na série Downton Abbey) e mesmo do que muitas das famílias classe-média-alta que se vê por aí. Em muitos momentos eles demonstram se importar com Val e parecem realmente gostar dela. A grande questão é que eles gostam e se importam com ela na medida em que ela (e por pressuposto, sua filha), segue determinadas regras. Quando estas são questionadas ou rompidas todo este aparente progressismo começa a ruir e a relação Casa Grande-Senzala fica evidente como nunca. Neste momento fica claro que Val não é "praticamente" da família: ela é empregada e eles patrões. Todo o véu de hipocrisia que cobre a relação patrão-empregado é exposto de forma nua e crua nesta obra fundamental do cinema brasileiro contemporâneo. #ficaadica

Update 10/09: Ainda refletindo sobre "Que horas ela volta?" pude perceber mais claramente que o filme retrata não somente um passado (e um presente) no qual a relação entre patrões e empregados remete à relação entre senhores e escravos, mas também a uma mudança em curso. E esta mudança é simbolizada de forma fenomenal pela personagem Jéssica, filha de Val. Jéssica não considera natural as regras implícitas e verticalizadas entre patrões e empregados e questiona essa relação assim como questiona as desigualdades do mundo. Mas não só. Jéssica almeja - porque pode almejar - outros objetivos para sua vida. Deseja fazer Arquitetura e Urbanismo na USP e de fato é aprovada - ao contrário de Fabinho, o filho mimado da patroa de Val. Jéssica pode e irá além. E isto porque uma série de políticas públicas iniciadas ou fortalecidas desde o primeiro governo Lula permitiram e incentivaram que pessoas como Jéssica pudessem chegar à universidade e almejar uma vida diferente daquela que seus pais tiveram e tem. Em meu cotidiano de trabalho (inicialmente como psicólogo e agora como assessor de assistência estudantil) em uma universidade pública tenho me deparado todos os dias e cada vez mais com pessoas como Jéssica: filhos e filhas de trabalhadores precarizados que ousam - porque podem ousar - estudar em uma universidade pública, tradicionalmente composta por filhos das classes média e alta que fizeram sua formação básica em escolas particulares. A universidade hoje é muito mais diversa e inclusiva do que a universidade de 20 anos atrás. E isto, ao contrário do que pregam os críticos (que apontam para um "rebaixamento da qualidade da educação superior"), é maravilhoso. Certamente muitos ajustes e aperfeiçoamentos ainda precisam ser feitos para que o acesso e permanência sejam fortalecidos, mas não é maravilhoso que Jéssicas e Fabinhos possam ter acesso e estudar juntos em uma universidade pública?